Simplesmente Interessante - A Incendiaria e os Bombeiros
Quando Getúlio Vargas preparava o seu golpe de estado de 1937, tomou uma precaução elementar: passou uma rede pelo País, apanhando nela, entre outros, todos os possíveis opositores que se espalhassem pelo território nacional. No Ceará mandaram os jornalistas simplesmente pra cadeia pública. Mas comigo, uma senhora de boa família, tiveram consideração: fui presa no quartel do Corpo de Bombeiros de Fortaleza, num imenso salão vazio, onde ficava o cinema, no momento desativado.
Era num primeiro andar e o acesso por simples escada. E, naquela vastidão vazia, uma pequena cama de solteiro, uma mesa, duas cadeiras. Incomunicável. Por quê? Eu não andava, conspirando, trabalhava na firma G. Grahdvol et Fils, onde embarcávamos algodão, caroço, etc, para a Europa.
Um dia, começos de outubro, me aparece na firma um senhor – um dos delegados de polícia, e me pediu que eu o acompanhasse até a porta; lá nos esperava uma “viatura” (porque policiais só chamam carro de “viatura”?). Levaram-me até o Corpo de Bombeiros, ao tal imenso salão em que falei. Eu fui entregue, não a soldados, mas à senhora do comandante, que praticamente me pedia desculpas e me mostrava, as precárias comodidades do local: levou-me a uma das janelas, disse que bastava eu chegar ali e dar um grito, ela imediatamente seria chamada.
Assim, morando com os bombeiros, passei cerca de um mês, enquanto Getúlio dava e consolidava o seu golpe. E praticamente me tornei bombeira. Da minha janela, assistia aos exercícios: é impressionante como aqueles homens arriscam a vida própria, adestrando-se para salvar a vida dos outros. E eles vinham marchar debaixo das minhas janelas. A senhora do comandante me mandava por eles gulodices da sua mesa. A sua filha adolescente, que eu chamava de “tenente”, também me visitava; era uma menina bonita a quem às vezes ajudava com os problemas da escola.
Era como se eu tivesse uma família afetuosa ali, ao alcance da mão. Já a minha própria família ignorava tudo de mim; nem meu marido, nem meu próprio pai, tinham o direito de me visitar.
Afinal, Getúlio deu o seu golpe, o Brasil voltou à normalidade possível, e nós, os “presos políticos”, fomos soltos. Voltei para casa, mas confesso que sentia um pouco de saudades. Não tinha mais as serenatas dos músicos sob as minhas janelas. Não havia mais ocasião de ajudar os bombeiros estudantes, aflitos, em hora de exame, que me mandavam em bilhetinhos as questões mais difíceis de português; bilhetinhos que eu devolvia com as respostas.
Enquanto isso Getúlio dava o seu golpe, tranquilamente, transformando o Brasil numa Itália fascista, sul-americana. Quem poderia reclamar, ser preso com escândalo, botar a boca no mundo, estava incomunicável por trás de grades. E só quando o Estado Novo se consolidou, garantido pelos generais do então, fomos devolvidos às nossas casas.
Saí, afinal, mas fiquei amiga da família do comandante. E, principalmente, fiquei amiga dos bombeiros. Alguns iam me visitar nas folgas. E, infalivelmente, ao me encontrarem na rua, assumiam posição de sentido, e me batiam solene continência. E eu, confesso, ficava morrendo de orgulho.
Vim embora, os “meus” bombeiros foram substituídos, mas não posso encontrar bombeiros na rua, e sem querer, esperar que eles me cumprimentem. Logo, porém, recordo que como as folhas de verão, os bombeiros mudam e são substituídos pelas folhas novas.
Outro dia parei o carro junto à calçada: lá vinham eles, no seu próprio carro, apressadíssimos, tocando o sinal de abrir caminho. Pareciam muito jovens, alguns sorriam. E evidentemente não pensavam nos perigos que os aguardavam pela frente.
E o carinho se renovou no coração da velha senhora.
Raquel de Queiroz
Fonte: Texto do livro; Existe outra saída, sim (Crônicas Brasileiras, Ed. Edições Demócrito Rocha), 2003
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